Vindas de outras cidades ou filhas da mesma Sobral, pessoas em situação de rua encontram no serviço de “flanelinha” um meio para sobreviver. Fome, frio e solidão são sentimentos diários nas vidas desses seres humanos
Ao caminhar pelas ruas de Sobral é comum deparar-se no meio da beleza de sua história, arquitetura e grandiosidade cultural com milhares de pessoas diariamente flanando ao passo de suas rotinas e compromissos. No meio da agitação, sempre com flanelas nos ombros ou nas mãos, segurando papelões ou baldes com água se encontram pessoas que fazem do serviço de flanelinha (guardador de automóveis) uma fonte de renda para tentarem sobreviver nas ruas; local onde muitos residem. Dias quentes, noites frias, fome, olhares de desprezo e corações solidários resumem o que acontece no dia a dia desses indivíduos que se sentem sozinhos no mundo.
No Ceará, já são 18.817 pessoas que vivem em situação de rua segundo o ‘Plano Estadual de Atenção a População em Situação de Rua’ para o quadriênio 2019-2022, divulgado no ano passado, com dados referentes a atendimentos por rede de proteção social em 66 dos 184 municípios do estado. Em Sobral, cidade localizada a 220 km da capital cearense, Fortaleza, ainda segundo o mesmo Plano Estadual, 730 pessoas viviam nas ruas.
Nas redondezas de um dos locais considerados sagrados na cidade, próximo a uma das belas igrejas, correndo de um lado para outro protegendo inúmeros automóveis, com simpatia e determinação em desenvolver o seu ofício, vive Jean* (*nome fictício), 39. Nascido e criado em um município que fica 350 km de distância da capital do estado do Ceará, ele decidiu sair de casa no ano de 2012 logo após a morte dos pais e problemas conjugais com a esposa; o que resultou em separação. Faz um pouco mais de um ano que ele chegou a Sobral, antes disso passou três anos em Fortaleza, onde tentava sobreviver levando a mesma vida.
Jean se sente mais seguro desde o mês passado quando uma amiga que ele fez na cidade deixou-o dormir na casa dela: “Ela me deixa entrar, tomar banho, me oferece comida. Lá dentro me sinto mais seguro, durmo tranquilo. Mas muitas vezes acabo perdendo o horário, pois o movimento aqui vai até tarde, e com vergonha de incomodá-la decido dormir na rua mesmo”, argumenta ele que também utiliza o rio Acaraú para se refrescar ou tomar banho quando sente necessidade.
Um dos sonhos de Jean é conseguir alugar uma casa e deixar de enfrentar o perigo que corre todos os dias: “Dormir na rua é perigoso. A gente dorme acordado. Temos que prestar atenção, pois já não temos muita coisa e existem pessoas que querem nos fazer o mal. É triste porque muitas vezes são pessoas que vivem nas mesmas situações que a gente”, ressalta ele.
Refeições e sentimentos
Desde que chegou à cidade, as pessoas tem se mostrado generosas: “De segunda a sábado logo que acordo já me chamam para tomar café, na hora do almoço me chamam para fazer a refeição. Só nos domingos não ganho por conta que todos vão almoçar fora”, destaca ele. O jantar sempre é mais complicado, é uma refeição rara na vida de Jean: “O trocado que ganho com o que faço ajuda muito na minha alimentação. Agora estou procurando colaborar mais para isso: me afastando de bebidas e pessoas que convidam para beber. Mas é muito confortante ver que existem pessoas de bom coração que sempre nos doam alguma coisa para comer. Mas não ter o que comer é triste”, confessa ele.
Jean deixou em sua cidade natal seus dois filhos (um menino e uma menina); com os quais sempre mantém contato por telefone quando pode e, seus irmãos que sabendo de suas condições atuais, fazem convites com frequência para ele voltar. Os convites foram negado várias vezes, pois segundo ele várias decepções embasam a história: “Gosto de autonomia, sem ter ninguém para mandar. Não gosto de pessoas duas caras”, enfatiza ele que segue enfrentando a solidão e o frio; dois sentimentos complicados em sua opinião.
As “Necessidades” de Sobrevivência
Em uma praça da cidade, outro flanelinha andava apressado tentando cobrir duas áreas de trabalho: o vizinho de profissão, também em situação de rua, havia saído para comprar drogas com o dinheiro conseguido durante o dia. Teodoro* (*nome fictício), 49, lembra do dia que foi atropelado e não recebeu socorro do motorista: “Era dia quando fui atravessar a rua e um carro me acertou. Apesar da dor que senti no momento e depois, dor maior foi quando pensei que ele fez isso e nem parou, seguiu em frente; me tratou como se não existisse, como se não fosse ninguém que precisava ser socorrido”, desabafa ele.
Teodoro é sobralense e há seis anos vive nas ruas. “Depois que meus pais morreram me senti sozinho no mundo. Meus irmãos não me tratavam como gente. Não me aceitavam com meus pequenos vícios, então decidi morar na rua”, ressalta ele que confessa fumar maconha e de vez em quando tomar cachaça com o dinheiro que ganha em seu trabalho diário.
Conseguir sobreviver na rua não é fácil. Além de conseguir dinheiro como flanelinha, Teodoro relata que para não passar fome se viu obrigado a topar o que lhe ofereciam: “Várias vezes já fiz programas por necessidade. Chegavam, me ofereciam vinte reais, geralmente homens, e me levavam para satisfazê-los sexualmente. Confesso que fiz algumas vezes. Mas já dormiu com fome? É uma das piores sensações da vida: você sonha comendo alguma coisa; é desesperador!”, relata ele com os olhos cheios de lágrimas.
Medo
Quando não consegue dinheiro com o trabalho, Teodoro revela que começa a pedir: “As pessoas costumam dar, outras nem ligam, pensam que a gente vai usar dinheiro para outras coisas. Mas quando eu peço, é para comer!”, enfatiza ele. Nos dias frios, misturado com a sensação de não estar protegido, ele não consegue dormir; sente medo: “Uma vez me espantei com outro flanelinha metendo a mão no meu bolso, tentando me roubar”, lembra.
No período de inverno, onde o frio predomina, as dificuldades aumentam para encontrar abrigo para dormir: “Às vezes estamos dormindo e começamos a tremer de frio, rapidamente pegamos resfriado. O frio assusta, mas o que causa mais terror é a sensação de que a gente é sozinho no mundo. Eu convivo sozinho”, conclui ele que fica triste quando tenta entrar em contato com a família e é ignorado.